Carta de Renascimento
Por, D. J. Santos.
Já faz muito tempo que venho estudando — ou talvez sentindo — a possibilidade de desistir. Muitos já me julgaram. Deram-me títulos, definições, colocaram-me em moldes. Todos pareciam saber quem eu era. Menos eu. Nunca soube de verdade quem sou, o que sou ou por que vim a este mundo. Qual é o sentido da vida?
Busquei esse sentido em minha rotina, na vida familiar, na fé, no espiritual. Peregrinei. E, ainda assim, esse sentido maior seguiu ausente. Certa vez, li que “as coisas que não dependem de nós não devem nos afetar” — uma lição estoica atribuída a Epicteto. Mas como não me afetar? Vivo no mesmo mundo que os outros. As regras sociais, os olhares e julgamentos moldam meus passos, limitam minhas escolhas. Como não me afetar se, ao me olharem, dizem quem sou, o que faço, o que farei?
Hoje escrevo para me despedir. Não da vida — mas da vida que me foi imposta. Da identidade que não escolhi. Das pessoas que me julgaram. Do próprio algoz que habita em mim, esse juiz implacável que vigia meu sono e vigília. Um juiz que não escolhi, mas que construí — e coloquei sobre um pedestal, com as mãos trêmulas de quem não sabia quem era.
E aqui estou. Escrevendo esta carta. Uma despedida da vida vazia. Da vida sem propósito. Lembro de quando achava que minha jornada terminaria num abismo. Mas no caminho encontrei outro peregrino, tão carregado quanto eu. Encontrei também uma bela virgem — símbolo da esperança e do acolhimento. Seu olhar me protegeu. Seu manto retirou de mim os fardos que me sufocavam. Naquele dia, fui curado. Naquele dia, renasci.
As dores não foram embora. Mas eu renasci.
Hoje, venho dizer: é hora de partir. Não para a morte, mas para um novo mundo — um mundo que não esteja construído nos olhares alheios, mas no meu próprio olhar restaurado. E ao contrário do que muitos podem pensar, não amarrarei uma corda a uma pilastra. Já vi amigos fazerem isso. Amigos que não suportaram o peso e decidiram sair do convexo mundo que nos habita. Eles deixaram para trás sonhos, esperanças, desespero.
Lembro-me do que disse Jesus, aquele que caminha comigo desde minha infância:
“As raposas têm suas tocas, e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mateus 8:20).
Talvez hoje eu compreenda. Realmente não tenho onde repousar. Porque a segurança é ilusão. Viver é incerteza. E viver plenamente não depende só de nós.
Durante o dia, caminho com homens e mulheres que tentam ser melhores. Alguns emanam vida. Outros, no entanto, sacodem, pela língua, o guizo de uma serpente que espreita. Aprendi na vida que é necessário conhecer as malícias do mundo, mas não consentir o mal. Como já li em algum momento, a metáfora "cabeça de serpente e corpo de pomba" reflete essa dualidade: precisamos ser astutos como a serpente, para compreender as malícias que nos cercam, mas puros como a pomba, não cedendo ao mal. No mundo em que vivo, é preciso ser sobrevivente.
Despeço-me do velho eu. Aquele que morreu, mas que teima em viver na oração das manhãs. Trago agora um novo eu. Um novo modo de estar no mundo. Um novo ser. Porque renasci.
Seja o dia frio ou quente, morro a cada amanhecer. Não é aquele que se deitou ontem que desperta hoje. É outro. É o renascido. O cantar dos galos, o voo das aves, o romper da escuridão — tudo anuncia o novo eu. Os problemas de ontem não existem mais. Os de amanhã ainda não existem. Só existe este momento, este agora.
Suspiro. Respiro. Escrevo. Vivo.
Quem está ao meu lado, está. Quem não está, não está mais. Esteja ainda neste mundo que compartilho ou apenas no mundo da memória — agora eu estou. E sigo.
“Hoje conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” (1 Coríntios 13:12).
E saberei, enfim, quem sou.
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