Meia na Janela.



David Santos
Querido Papai Noel, te escrevo, necessito de muitas coisas e nesse natal não quero ficar como nos outros natais. Minha história é um pouco diferente esse ano, sempre fui um bom menino. Quero dizer, sempre tentei ser. Mas a vida exige muito
de meninos como eu.  Não lembro mais de quantas meias deixei na janela, pedindo um brinquedo para ti. Muitas apodreceram. Pior, que não tenho muitas!
Não entendo, como pode me esquecer!
Sempre fiz tudo certo, mas nada, nada de presente, nada de nada. Passei de ano na escola, não maltratei meus pais e nada. Sempre se esqueceu de minha casa Noel.
Coloco meia na janela, porque minha casa não tem chaminé. Fique tranquilo, Noel, a porta não tem tranca. Não temos muita coisa para roubar, se forçar um pouco consegue entrar pela janela.
 Sabe, Papai Noel, Sempre te esperei, mas nunca veio. Não vi suas renas voadoras, não escutei seu hohoho. Bem que imaginei, que a bicicleta não cabia na meia, ou quem sabe, diante de tanta criança melhor do que eu, o senhor tem muita coisa para fazer. Mas neste natal quero algo diferente, quero saber o porquê?
Quantas cartas são deixadas na janela, sem respostas, sem presentes, sem mesmo se dar à devida atenção. O que me assusta, não são somente as cartas deixadas nas janelas, mas sim, a falta de janelas. A incapacidade de ter dignidade, o direito que não é garantido a quem nasceu e será obrigado a viver jogado nas calçadas. O país do futebol, da copa, se esquece do que lhe é mais importante, se esquece das pessoas.

 Quando ando pelas calçadas de nossas capitais, me assusto, por minha falta de compromisso social. Fico constrangido ao ver pessoas abandonadas, jogadas a uma vida sub-humana.

 Quando caminho nas periferias, me pergunto o porquê dessa política pobre e deficiente aos pobres, tão distinta da política de onde moram os ricos. Buracos e esgoto de um lado, praças e belas calçadas de outro. Sem mencionar a educação e a saúde.

 Como em minha escassez de privilégios, sou tão privilegiado!


As crianças que vejo nas calçadas não usam meias e não têm janelas. Para elas Papai Noel não passa do velho que dá balas as crianças que podem consumir nas lojas, nos shoppings da vida. Muitas dessas que vejo nem passam perto dos shoppings, neles não podem entrar, são impedidas de consumir, não têm dinheiro e não são consideradas dignas.

Uma coisa que a vida ensina, é que dignidade nos dias de hoje, é diretamente proporcional ao montante financeiro que se possui. Ela se compra, não se constrói. O "mundo" inverteu seus valores e a cada dia educa as pessoas para inverter seus valores, não é o homem mais o centro, nem é Deus, nem é a sociedade. É o capital, o poder, o desejar, o consumir, o ter, o possuir o novo, a nova tecnologia, a nova moda que se torna o centro.

 Papai Noel sabe bem disso e por isso não deixa presentes em janelas sem vidros, em meias sem dignidade, a cada dia ele está mais seletivo. A cada ano, mudam os desejos nas meias penduradas nas janelas sem sustento.

 Desde que o senhor nasceu na figura do bom Nicolau que distribuía alguns saquinhos de presentes, as damas que não tinham dote e que ajudava os pobres. Até a sua transformação no terrível homem vestido de vermelho que faz propaganda de refrigerante. Refrigerante adorado por homens e ratos. Você tem mudado muito, mudou tanto que fez com que esquecessem que o natal é comemoração, é esperança, é luz.

Luz da antiga festa Romana, voltada ao dia mais longo, ao Sol. Luz do nascimento do menino Jesus, esperança e luz do mundo para os Cristãos. Luz de tantas culturas. Luz que foi ofuscada pelas luzes do shopping que não distinguem dia de noite, que influenciam o consumo, que estimulam a economia e que produzem um universo de marginalizados, de esquecidos, de sem capital. Nessa nova "catedral" não se deixa mais a oferta, abandona-se nela o eu, o ser. Um olhar de sempre quero, mais espelhado nas vitrines, vitrine transparente que não permite que quem deseja  se perceba.

 Nesse natal, não vou deixar mais minha meia pendurada na janela. Não é que não acredite em Papai Noel, não é que já tenha acreditado, mas é que depois de tantos anos de meias vazias, acho que não fui um bom menino. Além do mais, resolvi me juntar aos meninos maus, deixados nas calçadas, sem presentes, sem meias, sem janelas. Meninos que não existem para o Papai Noel, meninos perdidos sem Terra do Nunca, meninos esquecidos e até invisíveis.

Nesse natal venho dizer a você Papai Noel, que não tenho mais como acreditar em ti, pois não é somente a mim que abandonou, mas abandona a milhares de pessoas que não têm janelas, que não têm chaminés, que não têm onde morar. Não quero seus presentes, suas falsas esperanças. Quero pensar num mundo sem as indiferenças que sua figura vermelha produziu e produz. Figura de desejo e fartura a uns e de miséria a outros. Junto-me ao menino que está a cada dia mais esquecido, junto-me ao menino Jesus e com ele vou passar meu natal. Mais um ano quero vê-lo nascer e com ele, nascerá em mim a esperança, a luz e a paz que tanto necessito, para esquecer das meias podres que foram penduradas nas janelas. Permaneça com sua crianças que compram todos os anos o direito de serem boas, permaneça sentado na cadeira do shopping, permaneça junto aos seus escravos duendes.
Um feliz natal a todos, um natal sem Noel, um natal repleto de paz, onde a luz da esperança nasça na vida daqueles que têm e daqueles que não têm. Por um mundo mais justo, por uma vida mais digna a todos!
Pelo menos esse ano olhem para quem não tem janelas, eles estão ali nas calçadas, nas ruas, estão tão abandonados quanto você. Menos nutridos que seu Pet. Menos considerados que seus desejos.

Um feliz natal, uma ano repleto de graças.

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